domingo, 30 de junho de 2024

sobre o destino by fema


Eu desafio todos que tiverem presentes de corpo (e alma) a conhecer o homem que será narrado, igualmente de corpo e alma.

A saleta da cartomante tinha aroma de algo muito forte. Seria esse o cheiro de magia? Gregório pensava. Mas não. Era algo mais conciso, mais entendível do que a espiritualidade jamais seria. Era um cheiro e ponto.

Entretanto, Gregório concordava, ou ao menos sabia disso? A resposta é também um grande e óbvio não. Ele, dessa forma, encantava-se com o ambiente. Se faz necessário, neste momento, entender os mistérios de porquê um homem tão invejavelmente burro — e isso será comprovado ao longo da história — queria saber de seu futuro.

Gregório tinha uma melhor amiga, Marta, por quem era apaixonado aos trinta que por si só já alerta a todos o perigo que este homem oferece. Pois havia certa pena da parte dela, mas ele não ligava. Gostava de migalhas e as lambia do chão sempre que lhe era dada a oportunidade. Cresça! Eu, que narro, já me farto de tal situação. Porém, ela, uma mulher estonteante, expressou nas entrelinhas um desejo por casamento e, sinceramente, há poucas coisas mais desejadas que um anel no dedo para quem tem trinta.

Gregório, daí, empenhou-se de uma maneira que o fazia tão ridículo quanto jamais fora. Usava uma armação verde de óculos pois era a cor preferida de Marta. Dava biscoitinhos de graça para ela sempre que era visitado no serviço, o que aconteceu duas vezes em quatro anos. Se apossava de suas gírias, comprou um gato persa igual o dela, raspava os pelos pubianos porque ela não gostava, mesmo que nunca tivesse ido lá em baixo e provavelmente nunca iria. Tudo por Marta. Ruiva, bonita e funcional, tudo que um dia Gregório queria ser.

A cartomante e, vejamos, cartomante — não taróloga ou astróloga ou nenhuma óloga, apenas uma clássica e misteriosa cartomante. Ora, não se precisa estudar para saber de coisas fora do plano terreno — a cartomante era caquética, mas sua manta deixava esse fato um pouco menos óbvio. Ele tinha medo. Seus dedos enrolavam-se como galhos, puxando panos, organizando medos. Seus olhos pareciam ter visto coisas demais. Gregório, se vivesse tendo conhecimento de seu futuro, ia ser meio traumatizado também, ele pensa. Ia dar medo.

Ela puxou seis cartas do monte e Gregório, com sua visão engenheira-quase-biônica, conseguiu ver quatro. Daí, suava frio com a possibilidade de dar errado por ele ter olhado. Sua vista fica trêmula e alguns princípios de desmaio encontram-se no seu rosto.

Ela vira algumas mas é impossível prestar atenção. Algo como seu emprego vai bem, suas casas estão rendendo. Ah meu deus virá uma tragédia em maio. Mas sua atenção é equivalente a um raio batendo num para-raio, e este é o amor. Marta. Ah, Marta. Quando a cartomante fala de mulher, o medo é substituído quase instantaneamente por ansiedade.

Vamos casar, minha senhora? Quem, meu querido? Eu e Marta, senhora. Ela ri, e sua risada grave ecoa nos cristais, nos gatos e no incenso de maracujá espanta-espírito ou algo assim. Uma risada seca de pena. 

Meu filho, o amor está mais próximo do que imagina. O amor verdadeiro está na ponta de seu nariz.

De repente, tudo faz sentido. Ah, ele sabia que a cartomante daria certo! Como pode, o espiritismo, o tarot, a astrologia, os astros enfim, os mortos, os vivos, a morte e a vida, seu aumento no trabalho, a bunda de Marta, a espiral do tempo, os olhos azuis de um gato persa, como pode? Um quebra cabeça infindável que foi completado por uma única peça.

Gregório, com todas as células do seu corpo, com todo o vazio de sua calvície precoce, inclinou-se para beijar a cartomante na boca. E beijou. A cartomante pula quase num instinto: não beijava feios. Ela se retorce de nojo imaginando o salgadinho de café da manhã ou o cigarro mentolado ou seja-lá-o-que era presente na vida desse homem. Meu deus do céu tenha compaixão.

Tu tens problemas de interpretação, querido. Mas você que disse, minha senhora, não se isente de culpa! A culpa é sua.

A culpa é sua.

Mas Gregório sabia disso? Deixaremos aberto a interpretações.

Um pudor nunca antes visto nele, de repente, aparece com um estrondo. O raio caiu duas vezes, em lugares diferentes. Aliás, um lugar totalmente diferente, quase diametralmente simétrico ao antigo. Ele saíra com uma mágoa na face que desmantelara em choro que desmantelou em quase um desmaio seguido de uma parada na calçada para pensar.

Quantas decisões é possível um homem tomar erradas?

Pensemos. Científicamente, é impossível detectar uma decisão errada, quando a subjetividade é subjetividade é quase um sufoco entendê-la. Mas Gregório objetivamente errava. E por mais que ele achasse que soubesse, que acertava, seu julgamento estava objetivamente errado. Ah, que burrice, que burro. Estúpido, até.

O número de Marta aparece no celular quase sem querer. São vários quases, ele pensa. Quase casa com Marta.

Não posso exigir que o conheçam, ademais, sua história se rebela contra si mesma. É impossível conhecer o infixo, o inrremendável. É impossível realmente conhecer o fraco de espírito. Ao sair da cartomante, e do telefone sem discar para ela, Gregório mantinha a mesma expressão; um medo. Este dado por não ser visto, apoteose, tornaria-se deus se outros quisessem — se Marta quisesse —, senão sumiria. Sentimento inédito. Mas sabia que, de qualquer jeito, uma mensagem na sua caixa postal estava lá. De supetão. Quase, novamente, inadequadamente.

Ele ouve. Deixe seu recado. Gregório, a quanto tempo não nos falamos. Conheci um homem. Acho que é o da minha vida! Quero que o conheça. Beijo, Gregório. Espero que esteja bem.

Apoteose, deixa essa merda pra lá, ele pensava porque na real nem sabia o que significava. Ele era burro, lembrem. Mas sabia que não se tornaria nada a partir do momento que entendeu Marta. Ai meu deus ele entendeu seu problema com Marta. E daí, conheceu o gosto de tomar uma decisão certa.


Fernanda Martins, em alguma tarde de maio de 2024 (primeiro sarau)

 

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