domingo, 30 de junho de 2024

espaguete ao molho bolonhesa by fema


Fora, ao vento, numa tarde de sol, lê-se num letreiro, em alto e bom tom, em cores gritantes e vivas: “Bistrô Camurça, since 2001”

Dentro, no ar condicionado e no bem e bom, há um prato de macarrão à bolonhesa sob a mesa.


Dona Camurça tenta comê-lo. Ergue o garfo, e nisso, foca todos os pensamentos em enfiá-lo perfeitamente entre os pedaços finos de massa. Espaguete é o macarrão mais consumido em todo o Brasil, ela pensa. É fácil de comer. Mas este pensamento, infortunadamente, só causa ânsia.


Leila Camurça Leone não é do Brasil. Podia até não se embaralhar no português, ou deixar certos maneirismos mais europeus pros seus pais, mas brasileira? Faça me o favor. Leila era antes de tudo, gastrônoma, e seria um desperdício ter nascido meio italiana se não se utilizasse disso.


Mas seu segundo nome, Camurça, foi a primeira palavra em português que sua mãe ouviu em terras brasileiras. A segunda, foi aeronave.


Aos 31, Camurça abriu seu terceiro restaurante; o de seus sonhos! O Bistrô Camurça, 2001, de ano e endereço, contava com vastas opções de pratos diversos, todos italianos, claro, com o selo da chef. Feitos por Leila Leone Camurça, meio italiana, meio fera, uma amálgama de qualidades e fetichismos. 


Ela engarfa a refeição, num perfeito emaranhado de carne, pasta de tomate, azeite e pura massa. Pura massa, ela pensa, da melhor qualidade. É bom, isso é ótimo. Dona Camurça, trêmula, tenta manter a maior quantidade de comida possível no talher antes de abocanhar o garfo ensebado.


Leila estava em diversas capas de revista antigas por ser a maior chef-fashionista-ícone dos anos dois mil. Sua imagem transparecia seriedade e elegância. Dez anos depois, ao passar quatro meses sem ser reconhecida na rua após falir dois de seus três bristrôs, Leila posou para uma revista pornô furreca de beira de esquina. Seus peitos caídos diziam: me compre! Sou Leila Camurça, metade Itália, metade tesão. De má sorte, novamente, recebeu apenas uns trocados e sua fama conseguiu, de alguma forma, cair.


Sobrevivia de encontros de fãs igualmente velhos e insignificantes, e um dinheirinho todo final do mês daquele restaurante que mal se sustentava.


Ela morde e engole a refeição. Por mais que aquele fosse o seu restaurante, e aquele fosse o seu macarrão, era fácil de esquecer como era a sensação de abocanhar um garfo ensebado. Afinal, Dona Camurça não acessava a cozinha havia anos: ora, nem tempo tinha para isso! Confiava seu trabalho a seus queridos colaboradores, que, por mais que a senhorita não soubesse, usavam dos apetrechos mais mequetrefes para cozinhar. Panela de teflon e molho de tomate vencido.


Não conseguiria enganar a si mesma.


Ah, Deus, ela sempre soube que sua comida tinha se tornado intragável de uns tempos para cá.


Não conseguiria fingir que aquele molho mofado era uma passata caseira ou aquelas panelas eram Le Creuset, ou que havia algum tipo de esforço posto naquela carne mal assada, naquele macarrão sem sal, onde tudo era industrial e mal processado.


A realidade bate como um martelo no estômago da cinquentona, que sente suas entranhas delirarem e pedirem por socorro.


A primeira coisa que retorna à sua boca é o gosto amargo do desgosto de si mesma. Logo após, aquilo que era chamado antes de macarrão a bolonhesa chega num estrondo na goela da mulher.


Dona Camurça vomita em cima do seu prato.


É impossível digerir. Ela não consegue parar.


Dona Camurça vomita tanto que o chão, antes de madeira, ganha uma coloração rubra feito tomate que quase combina com o roxo do local — se não estivesse acompanhado por uma gosma verde, daria para ficar lá mesmo, decorando o estabelecimento de Dona Camurça.


Seria assim, uma marca da gerência tão dedicada.


Dona Camurça vomita, talvez por querer, em alguns clientes de sua firma. De supetão, se inicia uma intriga, intriga essa que cresce. Aos poucos, os cozinheiros menores aprendizes levam socos, a garçonete perde um dente e Dona Camurça, coitada, leva a pior; pancadas no estômago que só corroboram para o seu final-destino.


Leila, ainda vomitando, é carregada por alguém para a calçada fria de São Paulo. O gorfo entra em si mesma, e entope sua via respiratória até que respirar pareça uma súplica. Seus olhos reviram, sua língua termina de abafar sua vida e por fim, ela morre. Morre na própria ignorância. Jornalistas chegam, transeuntes param pra ver, observar, comentar.


Finalmente, há de se conhecer o alimento que Camurça tanto desejava vender.


Fernanda Martins, pré sarau


Nenhum comentário:

Postar um comentário

leo by heitor

         Pense com a máxima sinceridade o que faria se o sistema fosse outro. Se no fim das contas, não fosse necessário sacrificar tanta co...